13/04/2012

Como estão a renascer os moinhos em Portugal?

Nos anos 60 do século XX mais de 11 mil moinhos operavam comercialmente em Portugal. Hoje, os poucos que subsistem servem novos propósitos. Á conversa com Jorge Miranda, membro da direcção da Rede Portuguesa de Moinhos, ficamos a perceber o estado destas estruturas seculares. O património molinológico, depois de décadas de abandono, parece agora recuperar. Vale a boa vontade de umas quantas entidades que vêem nos antigos moinhos modelos de desenvolvimento rural, com uma nova função social e económica. Uma conversa que se espraia para a etnotecnologia, para a figura do moleiro, para o projecto Etnoideias.

Café Portugal - Foquemo-nos, em inicio de conversa, numa questão pertinente: como têm, genericamente, os portugueses tratado o seu património molinológico?
Jorge Miranda - Existem muitos moinhos em Portugal. Se quisermos olhar para a realidade de uma forma absoluta, há muito poucos moinhos reconstruídos, ou em funcionamento. Mas se quisermos ter uma perspectiva relativa, nos últimos 15 anos, tem havido uma grande evolução, com muitas intervenções de preservação. A Comissão Portuguesa de Moagens e Ferragens, que foi em tempos a entidade reguladora, fez em 1962 um inventário nacional para efeitos fiscais. Nessa altura contabilizou cerca de 11 mil moinhos, a funcionar industrialmente, pagando impostos. Esse inventário, se fosse hoje feito, ficava reduzido a umas dezenas, a funcionar para efeitos comerciais.

C.P. - Qual é, então, o estado em geral dos moinhos em Portugal?
J.M. - A degradação dos moinhos afecta mais umas regiões do que outras. As regiões metropolitanas de Lisboa e Porto, por exemplo, têm cuidado muito mais os seus moinhos do que outras regiões. O litoral, no geral, tem prestado mais atenção aos seus moinhos do que o interior. Isso também se liga com a fixação de pessoas e a distribuição de riqueza. De uma maneira geral, os municípios são das entidades que mais fazem pelos moinhos e pelo património. A preservação do património molinológico distribuí-se desta forma, litoral, centros urbanos, e algumas manchas no interior quem têm uma excelente dinâmica, porque têm boas políticas de gestão do território e desenvolvimento local.

C.P.- De Norte a Sul, incluindo as ilhas, os moinhos foram-se adaptando a especificidades regionais. Pode-nos, sucintamente, fazer uma radiografia dessas adaptações que, no fundo, reflectem princípios tecnológicos complexos.
J.M. - Existem três tipos de moinhos: moinhos a sangue, moinhos de água e moinhos de vento. Os moinhos a sangue são os moinhos movidos a força animal que, praticamente, desapareceram.
Dentro dos moinhos de água, os moinhos de maré, estão no litoral e no estuário dos grandes rios. Os moinhos de rio praticamente já não existem. Eram moinhos com grandes rodas verticais que aproveitavam o caudal dos rios e que estavam associados a indústrias.
As azenhas de copos, são também moinhos de água compostos por umas rodas verticais com uns copos pequeninos e não funcionam com a corrente.
Os moinhos de vento estão sobretudo no litoral. Há raros exemplares no interior.

C.P.- Um termo que ouvimos associado à molinologia é a a etnotecnologia. Pode explicar?
J.M. - A ciência que estuda a tecnologia associada aos moinhos, a etnotecnologia, tem formas próprias de abordar esses conhecimentos. É um ramo da antropologia que olha para as técnicas, para o produto do trabalho das pessoas, não de uma forma meramente material, física e funcional. Mas também de uma forma imaterial, ou seja, envolvendo neste conceito o saber fazer e as técnicas. Os moinhos são factos técnicos; são materializações num lugar do encontro entre possibilidades locais e necessidades humanas. Não é possível estudar um moinho sem estudar toda a sua envolvente. Por exemplo, se hoje se quiser recuperar um moinho de água não se pode ter em conta só o edifício mas também toda a rede hidráulica, que entretanto entrou em falência porque não há regadio, não há manutenção da floresta. Muitos destes moinhos ao serem recuperados reabilitam todo um sistema. É a revitalização de sistemas inteligentes e ecológicos de gestão do território. Essa tecnologia era considerada de ponta quando falamos do século XVIII e ensinada, inclusivamente, nas universidades da altura. Esta tecnologia existe, está-se a perder a componente empírica. A fileira moinhos está interrompida, mas é possível dizer que o mastro faz aquele senhor que faz barcos, a roda dentada vai fazer aquele senhor que faz carroças. E desta maneira ir mantendo essa tecnologia.

C.P.- Os moinhos encontram, hoje em dia, uma sociedade muito diferente daquela onde desenvolveram a sua função social e económica. Como podem continuar a servir as populações?
J.M. - Hoje os moinhos podem ter vários tipos de utilização. Em grandes cidades como Porto e Lisboa é possível fazer boas acções de requalificação urbana e criação de espaços verdes, áreas de descompressão, associadas a programas mistos de lazer e educação. Nas cidades é possível a criação de projectos para a ligação de três gerações diferentes. Pode-se também fomentar a relação intercultural. Por exemplo no moinho de maré do Montijo, há dois anos atrás, no dia aberto dos moinhos, propus uma actividade para juntar duas salas de uma escola sendo que uma destas tinha vários alunos emigrantes. O objectivo foi a troca entre os alunos do bolo de milho típico do Montijo e o bolo típico de África. Este tipo de actividades utiliza o moinho como um pretexto para construir relações, criar laços entre pessoas. Mas também cria laços territoriais, porque a actividade passa-se num sítio e tem a ver com identidade cultural de uma zona. Ajuda a criar uma relação de interactividade entre as pessoa associando fazendo uma ancoragem ao território.

C.P.- E do ponto de vista do desenvolvimento rural?
J.M.- Do ponto de vista do desenvolvimento rural os moinhos servem duas outras possibilidades: qualificar o território, para o recuperar e valorizar. Quando o moinho é construído a propriedade vale mais. Por exemplo, quando se arranja um moinho de água e este é posto a funcionar, todo o sistema a montante é arranjado, limpo e mantido. Quando isso acontece a floresta é mantida, as águas são aproveitadas com mais eficácia. Há toda uma reacção em cadeia que tende a ser aproveitada do ponto de vista educativo. Há potencialmente a criação de um certo turismo educativo e de lazer que se destina às populações em idade escolar e à terceira idade, faixas etárias que ajudam à sustentabilidade destes projectos. Leva-se as pessoas a visitar e a despender dinheiro em sítios onde antes não iam. Em Aboim, por exemplo, um projecto começou por implicar a reconstrução do moinho, acabando por transformar a escola desactivada num museu. Está muito mais gente a ir lá. Vai, entretanto, surgir um restaurante na aldeia. Aquele terra que passou a estar no mapa, porquê? Porque os moinhos são altamente competitivos. Um monte que tenha um moinho em ruínas é mais competitivo do que um monte que não tem nada. Se esse moinho não tiver em ruínas é ainda mais competitivo, porque as pessoas vão visitá-lo. Se tiver as velas abertas e se estas tiverem a rodar é mais ainda. As pessoas passam na estrada, vêem algo a rodar e são atraídos pela curiosidade. Ainda no exemplo de Aboim, foi criado um conjunto de percursos, há muito dinâmica da junta de freguesia e apoio da câmara.
Activámos ao nível da micro-escala pequenas economias que, podendo não parecer muito, são complementares à subsistência de determinado local, constituindo num incentivo para não despovoar aldeias inteiras, que de outra forma vão desaparecer.

C.P.- Pode-nos dar mais alguns bons exemplos de recuperação ou manutenção dos moinhos?
J.M.- O município de Boticas criou um parque com percursos e dezenas de moinhos recuperados, e existem de norte a sul do país vários outros bons exemplos de recuperação e manutenção, em Viana do castelo, Oliveira de Azeméis onde foi criado uma área de lazer enorme que envolve duas aldeias. Em Penacova há alguns moinhos interessantes. Entre muitos outros no sul do país.

C.P.- O que é feito da figura do moleiro? Actualmente existe algum incentivo para se ser moleiro e para a transmissão de saberes?

J.M.- O ofício do moleiro, inserido nas moagens, é diferente do ofício de construtor de moinhos.
Há alguns gestos que estão quase em extinção, relacionados com as mós de pedra e com o picar destas e trabalhá-las. Mas, digamos que é uma parte do ofício que é facilmente recuperável porque está devidamente estuda e publicada. Nós, Etnoideia, a Rede Portuguesa de Moinhos, fazemos acções para manter os moinhos abertos e a funcionar, para que estes gestos se vão fazendo, pois sendo elementares têm, todavia, saberes e truques. A figura do moleiro concebido com este sistema antigo vai desaparecer. Já organizámos dois cursos, um no Algarve com a Associação de Desenvolvimento da Costa Vicentina, para animadores de moinho de vento. O participante no curso já seria capaz de fazer funcionar um moinho de vento, fazer construir estas tais relações entre grupos e ser capaz de atender turistas. É preciso integrar todas estas competências e não se concentrar tanto na produção da farinha, porque essa farinha já não é competitiva. Não quero com isto dizer que os moleiros em si se vão extinguir, vão é adaptar-se aos novos tempos. Assim como os moinhos para não se extinguirem mantêm-se como eram e adaptam-se aos novos tempos.

C.P. -Já a Etnoideia tem um conceito que vai mais além, propondo a reconstruir dos moinhos e «património rural integrado em processos de desenvolvimento sustentável»…
J.M.
- A Etnoideia é uma empresa de desenvolvimento local, que olha para os moinhos de uma forma holística. Começou por ser uma súmula de projectos feitos por pessoas, muito em torno de mim, pois havia um conjunto de pressão e confiança depositado para que fossemos nós a construir os moinhos. Dos projectos passou-se a uma cooperativa e como esta não podia fazer um conjunto de coisas, porque estávamos limitados ao objecto social, resolvemos então avançar para uma empresa, funcionando nessa área numa óptica de mercado.
A Etnoideia, nos seus projectos, para além da sustentabilidade e da responsabilidade ambiental, canaliza uma parte dos seus resultados para a Rede Portuguesa de Moinhos, nas publicações e outras acções. Financia também as despesas da Sociedade Internacional de Molinogia em Portugal. No fundo são os moinhos que pagam os moinhos. Os nossos projectos envolvem toda a fileira, ajudamos a desenvolver o conceito, ajudamos a desenvolver o modelo de negócio e produzimos de chave na mão a totalidade das peças, desde o levantamento no terreno, à reconstrução do moinho, ao material pedagógico aos sites. E trabalhamos de perto com as comunidades onde os moinhos são reconstruídos.

Carla Santos

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